domingo, 2 de dezembro de 2012

Manifesto contra o empreendorismo ou a gaivota que muge


Desisto. Nunca serei um empreendedor, talvez seja isso, não tenho perfil. Enfim, por esse facto, que tomo aqui como uma fatalidade, nunca farei parte do progresso económico do país, nunca participarei no incremento da sua eficiência industrial. Não sei como se cria riqueza e, para ser sincero, nem isso me interessa; pelo menos agora, que aqui vos deixo, após uma espiral de hesitações e conta-hesitações, a confissão da minha nulidade produtiva. Espero que o estado português não me condene à pena capital, agora que já sabe que não pode esperar nada de mim e que, quiçá, irei sabotar, com toda a pujança de minha idiotice, a sua “emergência” na “ grande cena mundial”. Não tolerarei, também, esse mérito que tanto advogam, diria mais, propagandeiam; antes o lodo, no qual afogarei toda a dignidade humana – a vossa dignidade humana! – do que essa vaidade ignóbil, trasvestida de trabalho incansável, cumprimento do dever e “realização pessoal”.

Frustrarei toda a gente, desde a minha família, que tanta esperança depositou no meu prometido, mas sempre por mim dissimulado, monumental falhanço, passando pelos amigos, diante dos quais sempre assegurei o meu caráter excecional (na ótica dos “negócios humanos” e dos habituais ritos de ascensão colectiva), culminando no país, que com tanta estultícia sustentou uma parte significativa do meu ócio, desbaratado em bebedeiras colossais, declamações de poemas medíocres em praça pública e leitura de obras filosóficas obscuras. Apesar de tudo, sempre fui um bom rapaz, ou, pelo menos, sempre me esforcei em sê-lo – e deus sabe quanto me esforcei! -, isto, do ponto de vista da moral e do bons costumes; mas, hoje, já não suporto mais, assinalo categoricamente a minha fraude. Condenem-me. Ouviram, não contribuirei um chavo para o bem-estar da humanidade, como se diz na gíria, “tou-me a cagar”. Não tenho futuro, a minha passagem por este grão do universo não tem qualquer sentido, não servirei o vosso progresso, não serei vosso escravo, não compartilharei do vosso sono. Pirâmides no Egipto, Sagradas Escrituras ou Washington D.C.. Ao mesmo tempo, não tenho a audácia suficiente para dispensar o meu corpo, afinal de contas, vocês não me irão abandonar. Se eu vos cuspir em cima, ou publicar este manifesto, no mínimo, censurarão o meu desprezível cinismo ou esbofetear-me-ão, no máximo, exilar-me-ão num hospício, onde conservarei, ainda, toda a minha existência mesquinha e o meu espírito amaldiçoado – exibindo a língua de fora e uma ereção tardia. Enfim, a última palavra estará sempre do meu lado, porque a vossa cobardia, e o vosso temperamento ameninado por séculos de moralidade, nunca possuirá a força nem a determinação suficientes para silenciá-la; principiarão por tentar justificar o meu comportamento, de seguida, redigirão o diagnóstico e, por último, ditarão a sentença. Sempre foi assim, faz parte dos procedimentos da máquina burocrática desse grande ministério da saúde que é a “sobrevivência da espécie”.

Já disse, não quero saber da vossa economia, nem da vossa prosperidade, quero apenas que me permitam que por aqui ande por mais uns tempos. Ocupando ocupações maximamente sórdidas, indecentes, remunerado por algum primata bem vestido e congenitamente burlão, prostituindo o meu corpo assexuado por um “punhado de bens de subsistência potenciais”. Quanta metafísica há numa moeda de lata! O meu sonho não é ser rico – só por aqui, como poderia então eu gerar riqueza em vista de ampliar a “nossa satisfação social”? A única economia que me interessa é a minha, se terei dinheiro para o almoço de amanhã ou trocar os sapatos que perderão o brilho depois de amanhã. Nada mais do que isto. E, de vez a vez, um pequeno contributo, em forma de imposto, talvez.

Tomar-me-ão como um homem sem ambições, um simplório. Ainda assim também guardo em mim “todos os sonhos do mundo”, coisas insignificantes que a vossa moeda não compra, nem a complexidade de todos os vossos sistemas em harmonia alcançam. Coisas suficientes para erguer a minha cidade mesclada de espuma e vómito sobre a qual vou edificando a minha personalidade doentia, cheia de raiva e irracionalidade. 

terça-feira, 26 de junho de 2012

Movimentos cívicos! E agora?


Os últimos dois anos assinalam, tanto para Portugal, como para a Europa e o resto do mundo, a emergência de novos actores sociais (ou actores sociais agora em actividade), com estes, novos movimentos cívicos (independentes ao poder político, das elites governativas), que tornaram e tornam irreversíveis certos efeitos que abalaram e abalam as "tradicionais" relações de poder (que foram assim postas em causa) e fizeram reconhecer, a essas mesmas elites, o capital de potencialidades que um número, cada vez mais amplo, de "súbditos" possui relativamente ao poder soberano. Assim, independentemente das diferenças entre os movimentos que levaram à deposição dos governos da Tunísia e do Egipto, os movimentos a favor da maior regulação do mercado financeiro norte-americano e os movimentos contra austeridade de Portugal, Espanha, Grécia... Podemos identificar, como característica transversal a estas singularidades, a emergência daquilo que tomamos aqui como "maiorias qualificadas". Maiorias estas que se sentem frustradas, de alguma forma, por se identificarem com essas elites que detêm o poder (no sentido em que contam com tantas faculdades ou competências como estas para tomarem o seu estatuto) e por sentirem que o seu capital acumulado (nomeadamente o capital cultural, o conhecimento) não estar a ser devidamente aproveitado.  

Assim, esta "emulação" das potências do capital cultural na esfera pública (acumuladas por uma geração maioritariamente jovem, informada e informatizada, qualificada, cosmopolita…) não pode ser ignorado, a partir deste momento histórico, nem pelas elites governativas, nem sequer, e principalmente, por eles mesmos, pelos próprios movimentos em questão. Não basta portanto ocupar as praças das capitais e das principais cidades dos países em questão; não basta construir plataformas para a participação cívica; não basta ter iniciativa e um objectivo cívico a cumprir. É necessário, portanto, passar da contingência ditada pela conjuntura (contingência que fez emergir todos estes movimentos, mas que não os garante, sustenta, nem os perpetua), para o arranjo e solidificação de novas estruturas. O mesmo que, não basta "lutar", fazer pressão, contra o poder constituído (numa óptica do conflito; da dualidade do poder, jogada entre governantes e governados) é urgente, forjar as estruturas, com estas, as rotinas, as práticas, o conhecimento, a cultura, de modo a que, este universo amplo (em termos quantitativos) de actores sociais - com vontade de inscrição na esfera pública - possa, de alguma forma, tomar o poder. 

Não sendo isto pensado e feito, primeiro, não há garantias que as elites governantes irão responder aos seus apelos, segundo, também não há garantia quanto à durabilidade destes mesmos movimentos, podendo ser tão efémeros quanto a conjuntura que ditou a sua emergência.

sábado, 23 de junho de 2012

Austeridade em Portugal, game over ou não?




Numa perspectiva cínica a notícia sobre a eventual derrapagem orçamental comunicada por Vítor Gaspar não deixa de ser, aparentemente, uma boa notícia. Simplesmente pelo facto de, esta derrapagem pelo lado da receita, dar entender que a administração central chegou ao ponto em que o aumento dos impostos (em especial do IVA que, no mês de Maio, caiu em 2,8%) não é coincidente com o aumento da receita, já que, o consumo persiste em contrair-se e as medidas de crescimento são insuficientes para reverter a situação, não sendo pelo simples facto que não beneficiam o consumo interno.

Desta forma, o governo, de modo a cumprir o défice de 4,5% para este ano, e consoante os dados noticiados aqui, apenas tem, em meu entender, novamente aparentemente, cinco margens de manobra:

1) Ou encara o facto da queda na receita dos imposto indirectos (que, por serem os mais universais e "cegos" são, também, os mais injustos)  como uma oportunidade de aprofundar a distribuição equitativa dos esforços de consolidação procurando afectar os rendimentos de família ou de capital mais elevados;

2) Ou persiste na redução do desperdício, o que requer um esforço energético de racionalização das instituições públicas, salientando que, tal política, já tem surtido bons efeitos (como o facto da compra de bens e serviços ter diminuído 7,5%). Sendo que, reduzir o desperdício não é o mesmo que reduzir os custos laborais, quanto mais, demitir trabalhadores;

3) Ou o governo estende o seu plano de privatizações (na procura por receita que já não é possível arrecadar pela via mais fácil, o IVA) e persiste no encerramento de dadas instituições e serviços de capital público, desbaratando, deste modo, o património nacional (o que, só é sustentável, do meu ponto de vista, ideologicamente); 

4) Ou corta, ainda mais, nas despesas com a Segurança Social, p. ex., restringindo/dificultando os critérios de acesso ao subsídio de desemprego (reduzindo, p. ex., o tempo de direito de usufruto) ou o seu valor nominal;  

5) Ou aprofunda a política de policiamento e controlo quase até ao limite onde crime e coacção se tendem a confundir no tempo e no espaço, o que condiciona, como evidente, a liberdade dos cidadãos.  

De qualquer forma, apesar do esforço aqui empenhado em esclarecer as cinco possibilidades ao dispor do governo para reverter a situação e atingir o seu objectivo em termos de défice orçamental, temos de ter consciência que as três primeiras necessitam de mais tempo para se realizar e surtir o seu efeito, não possível já em 2012 (e esse tempo só pode ser obtido da benevolência das instituições europeias e do FMI; o que conduz ao que o governo se nega a fazer: reestruturar a dívida) e as outras duas não são possíveis por risco de intensificação violenta dos conflitos sociais. Para além do facto de, sendo todas estas políticas de contracção económica, os efeitos esperados ao nível do consumo privado continuam os mesmos mas para pior. Assim, se não existir, de alguma maneira, políticas de emprego, ou de incentivo ao crescimento, que promovam o consumo interno, o nível das receitas fiscais, nomeadamente o IVA, persistirão em conservar-se ou diminuir ainda mais. 

Enfim, resta-nos esperar pelo Sebastião, que, numa manhã de nevoeiro nos irá salvar (em linguagem economês: resgatar).

sexta-feira, 22 de junho de 2012

A dualidade da democracia: conservação e subversão



A democracia não é somente um meio de exercer o poder, é também um fim sempre por almejar, sempre por se cumprir, um projecto nunca acabado. 

Tendo em conta esta "dualidade da democracia" se compreende que as teorias realistas da democracia são sempre curtas, sempre insuficientes. Já que, a democracia, não é somente uma prática, uma prática tornada sistemática - como o direito legado aos cidadãos de escolherem os seus representantes de x a x anos. 

Portanto, para além desta visão realista ser perfeitamente ingénua e simplista, é também profundamente conservadora, pois que, não entende a força performativa, ilocutória, da palavra democracia. Esta não é somente a contenção do poder ou da potência, que se efectiva e se "redime" no momento eleitoral, ou em quaisquer decisões tomadas pela vontade da maioria. A democracia, enquanto conceito, é também uma "arma de arremesso"; como Nietzsche diria, "uma vontade de poder".     

Tal como o conceito de igualdade e de liberdade (pátrias semânticas da revolução francesa) o conceito de democracia inscreve-se no "espaço social" (para utilizar a nomenclatura de Pierre Bourdieu), decide os termos da luta pelo poder que aí se determinam entre classes em potência ou interesses de grupo divergentes, em suma, diferencia quem está de um lado e do outro da barricada. A democracia é um conceito político, guerreiro, portanto, um "instrumento" na luta pelo poder.

Assim o sendo, podemos, desde logo, marcar a distinção social de interesses entre quem detém, a dada altura, o poder, e defende, por essa causa, a conservação da forma democrática vigente (o processo eleitoral regular de um Estado moderno de Direito) e os que estão ou se sentem excluídos desse mesmo exercício do poder (os mais fracos, nesta perspectiva) e que combatem por subverter a situação. Concluindo, a distância que separa os teóricos "realistas" (para quem o que importa é conservar um dado status quo) da democracia dos "idealistas" (para quem esta está sempre por se definir, por se concluir, até que estes mesmos tenham invertidos as relações de poder para seu abono), é igualmente uma distância social, uma crispação, entre os que detêm o poder e os que o pretendem.  

quarta-feira, 20 de junho de 2012

O terrível paradoxo do capitalismo ou do humanismo burguês


O humanismo burguês (para utilizar a definição costumeira do Guilherme Castanheira) - para Karl Marx e apóstolos, emergente da Revolução Francesa de 1789 - faz transparecer aquilo que tomamos aqui como o terrível paradoxo do capitalismo. Mais concretamente, o terrível paradoxo da justiça capitalista e que se pode assim sintetizar: no sistema capitalista (com o seu humanismo burguês cristalizado na forma do Estado de Direito) todos somos iguais perante a justiça mas a justiça não é igual para todos.

Assim, de facto, ninguém está acima (pelo menos, formalmente!) do quadro jurídico forjado no complexo parlamentar, na constituição e nas próprias regulações supranacionais, mas, por outro lado, o eixo paradigmático do sistema tende, com vista a se preservar, a beneficiar os mesmos e sistemáticos sectores em prejuízo do esforço de equidade social. É assim que, o poder político representativo (a sua classe burguesa de eixo central), em meio da crise das dívidas soberanas e da própria resposta à solvência bancária (como sucede em Espanha), não olha a meios para garantir o predomínio do capital financeiro como "motor primeiro" da economia mundial. Desta forma, os Estados têm, com certeza, capacidade de regulação/de resposta sobre este mesmo sistema, mas nenhum Estado questiona a sua hegemonia nem se rebate contra o seu fim. Os Estados garantem a salvação/resgate dos bancos, das instituições financeiras, mas não salvam/resgatam o cidadão comum. Pelo contrário, é por meio da riqueza criada por este último, e de direitos sociais violentamente "suspensos", que se faz a transferência do produto do trabalho para o capital. A balança cega da justiça, não vê que a mão que dá é a mesma  que tira.    

Como resumiria o linguista e muito mais Noam Chomsky "um princípio básico do Estado moderno capitalista é que os custos e riscos são socializados ao máximo possível, enquanto o lucro e os benefícios privatizados".

A Ideologia não está morta!


A ideologia não está morta, a atestá-lo, a recente campanha da elite europeia contra a eventual vitória do partido de extrema-esquerda (!) Syriza. A campanha não foi feita de forma devidamente organizada, em uníssono e directa (como um bom gabinete de propaganda europeia) - não contando, claro, com o lamentável episódio com o  Financial Times alemão (ler aqui), onde, explicitamente, se apelava ao voto na direita parlamentar grega - antes, tal campanha, foi promovida de forma difusa, insuspeita e, aparentemente, totalmente acidental. O que, justamente, revela,  ao invés de ocultar, a existência de certas ideias e perspectivas, no necessário em tudo semelhantes, quanto ao modo de se organizar/ordenar a economia e as sociedades europeias. Assim, o Presidente François Hollande  bem que pode ter revelado a outra face da moeda, dizendo que, para além da contracção (recessão) temos a expansão (investimento). E, decerto, tal volte-face, foi sentido com alívio, tanto para os países periféricos ao momento sob intervenção (descontando os governantes portugueses que, às tantas, já se tinham entusiasmado com o status quo), como para a própria Espanha e Itália, e, inclusive, para o resto dos países do mundo, que receavam, assim, perder um potente mercado de consumo. De toda a maneira,esta viragem de 180º, só possível devido há grandeza e importância (diplomática, económica...) de uma nação como a França, não tivera por efeito a reacção irreflectida e automática que só a vaga possibilidade de um governo de extrema-esquerda (!) na Grécia impulsionara. Poderíamos arguir que, a facilidade com que a elite europeia "assimilou" esta viragem à esquerda (!), que se traduz, muito simplesmente, com a prioridade do conceito crescimento sobre o conceito austeridade na agenda política europeia, deve-se, unicamente, ao porta-voz desta mudança, mais do que ser Hollande, ser a França. De toda a maneira, ainda que reconhecendo a importância do retorno do socialismo à França para esta maior facilidade de "digestão" do repto "não mais austeridade é preciso agora crescer", não creio, de todo, que, se neste país, tal como ocorrera na Grécia, fosse um partido de esquerda radical (tipo Syriza!) a "ameaçar" tomar o poder, as reacções não fossem as mesmas.

A ilusão do fim da história, do fim das ideologias, de que os modelos económicos e sociais "de fundo" já foram esgotados e se acabaram as alternativas, só é possível conservar-se, enquanto os parlamentos forem dominados pelas forças de "direita" e de "esquerda" do eixo central. Já que, como assistimos por motivo das eleições gregas, a partir do momento em que uma força (de esquerda) fora do eixo se "arrisca" a ocupar o lugar de governo logo as diferenças se insurgem, a farsa acaba e os porta-vozes da ideologia reagem em modo Pavlov.