Desisto. Nunca serei um empreendedor,
talvez seja isso, não tenho perfil. Enfim, por esse facto, que tomo aqui como
uma fatalidade, nunca farei parte do progresso económico do país, nunca
participarei no incremento da sua eficiência industrial. Não sei como se cria
riqueza e, para ser sincero, nem isso me interessa; pelo menos agora, que aqui
vos deixo, após uma espiral de hesitações e conta-hesitações, a confissão da
minha nulidade produtiva. Espero que o estado português não me condene à pena
capital, agora que já sabe que não pode esperar nada de mim e que, quiçá, irei
sabotar, com toda a pujança de minha idiotice, a sua “emergência” na “ grande
cena mundial”. Não tolerarei, também, esse mérito que tanto advogam, diria
mais, propagandeiam; antes o lodo, no qual afogarei toda a dignidade humana – a
vossa dignidade humana! – do que essa vaidade ignóbil, trasvestida de trabalho
incansável, cumprimento do dever e “realização pessoal”.
Frustrarei toda a gente, desde a minha
família, que tanta esperança depositou no meu prometido, mas sempre por mim
dissimulado, monumental falhanço, passando pelos amigos, diante dos quais
sempre assegurei o meu caráter excecional (na ótica dos “negócios humanos” e
dos habituais ritos de ascensão colectiva), culminando no país, que com tanta
estultícia sustentou uma parte significativa do meu ócio, desbaratado em
bebedeiras colossais, declamações de poemas medíocres em praça pública e
leitura de obras filosóficas obscuras. Apesar de tudo, sempre fui um bom rapaz,
ou, pelo menos, sempre me esforcei em sê-lo – e deus sabe quanto me esforcei!
-, isto, do ponto de vista da moral e do bons costumes; mas, hoje, já não suporto
mais, assinalo categoricamente a minha fraude. Condenem-me. Ouviram, não
contribuirei um chavo para o bem-estar da humanidade, como se diz na gíria,
“tou-me a cagar”. Não tenho futuro, a minha passagem por este grão do universo
não tem qualquer sentido, não servirei o vosso progresso, não serei vosso
escravo, não compartilharei do vosso sono. Pirâmides no Egipto, Sagradas
Escrituras ou Washington D.C.. Ao mesmo tempo, não tenho a audácia suficiente
para dispensar o meu corpo, afinal de contas, vocês não me irão abandonar. Se
eu vos cuspir em cima, ou publicar este manifesto, no mínimo, censurarão o meu
desprezível cinismo ou esbofetear-me-ão, no máximo, exilar-me-ão num hospício,
onde conservarei, ainda, toda a minha existência mesquinha e o meu espírito
amaldiçoado – exibindo a língua de fora e uma ereção tardia. Enfim, a última
palavra estará sempre do meu lado, porque a vossa cobardia, e o vosso
temperamento ameninado por séculos de moralidade, nunca possuirá a força nem a
determinação suficientes para silenciá-la; principiarão por tentar justificar o
meu comportamento, de seguida, redigirão o diagnóstico e, por último, ditarão a
sentença. Sempre foi assim, faz parte dos procedimentos da máquina burocrática
desse grande ministério da saúde que é a “sobrevivência da espécie”.
Já disse, não quero saber da vossa
economia, nem da vossa prosperidade, quero apenas que me permitam que por aqui
ande por mais uns tempos. Ocupando ocupações maximamente sórdidas, indecentes,
remunerado por algum primata bem vestido e congenitamente burlão, prostituindo
o meu corpo assexuado por um “punhado de bens de subsistência potenciais”.
Quanta metafísica há numa moeda de lata! O meu sonho não é ser rico – só por
aqui, como poderia então eu gerar riqueza em vista de ampliar a “nossa
satisfação social”? A única economia que me interessa é a minha, se terei
dinheiro para o almoço de amanhã ou trocar os sapatos que perderão o brilho
depois de amanhã. Nada mais do que isto. E, de vez a vez, um pequeno
contributo, em forma de imposto, talvez.
Tomar-me-ão como um homem sem ambições,
um simplório. Ainda assim também guardo em mim “todos os sonhos do mundo”,
coisas insignificantes que a vossa moeda não compra, nem a complexidade de
todos os vossos sistemas em harmonia alcançam. Coisas suficientes para erguer a
minha cidade mesclada de espuma e vómito sobre a qual vou edificando a minha personalidade
doentia, cheia de raiva e irracionalidade.